Todo ato insano tem em si sua razão de ser

Eis minhas loucuras, transfiguradas em letras e caracteres estranhos numa combinação muitas vezes sem sentido, malucas e desconexas, um amontoado geral de coisas sem valor algum, às quais dou o nome de distonâncias inconsequentes...

5.5.07

Batismo de sangue (editado)

Já era tarde, quase três e meia, mesmo que procurasse, encontraria aberto apenas o Purgatório. Não consigo imaginar melhor nome para aquela pocilga, se existe um deus, com certeza há muito se esqueceu daquele lugar onde as paredes parecem transpirar sangue e o piso, ácido gástrico.
Perto dali, Vico caminha afoito, um pouco desorientado, como se não conhecesse a região. Olha assustado para os lados e, a cada barulho que ouve, um ritmo gelado toma seu coração e lhe petrifica a alma.
-Vai graxa dotô?
Fitou os olhos do homem e, sem dizer uma única palavra, se sentou. Terno muito bem cortado e uma maleta metálica, mais um “adevogado”, pensou o engraxate.
-Esta praça lhe rende um bom dinheiro, amigo?
-Sabe dotô, não posso reclamar, meu pão vem dessa praça. Já foi melhor sim, mas hoje as pessoa não podem mais parar na minha cadeira. Tem cliente antigo que passa, até cumprimenta, mais estão sempre ocupado demais pra dá uma graxa no pisante.
-Mas você se vira com outras coisas? Faz alguns bicos, né?
-Claro dotô. Ajudo pedreiro, levo cachorro pra mijar, carrego peso, sou pau pra toda obra, sabe? Tenho família pra criar, dotô.
-Qual seu nome?
-É Vico, dotô.
-Vico, um cliente meu precisa de alguém para fazer entregas de madrugada. Você tem interesse?
Uma leve brisa embala a cortina de linho. Ainda está escuro. Num canto os olhos vermelhos que o observavam por toda a noite, agora marcavam cinco e meia. Deu um beijo na testa da esposa e se sentou.
-Já vai meu bem?
-Vou passar antes no SINE. Vai que tem alguma vaga pra mim?
-Vai sim, amor. Deixa que eu busco a Clarinha no Centro Comunitário hoje.
Tomou um banho rápido. Gelado para não gastar energia. Claro que sentia frio, mas de que outra forma poderia fazer o pouco dinheiro que ganha durar depois das contas?
Vestiu uma roupa qualquer enquanto sua mente vagava distante, numa vida melhor para Maria clara.
Vico caminha afoito, um pouco desorientado, como se não conhecesse a região. Olha assustado para os lados e, a cada barulho que ouve, um ritmo gelado toma seu coração e lhe petrifica a alma (sim essa cena se repete). No rosto o suor escorre frio. O ranger da roda do carrinho de mão denuncia sua presença e torna ainda mais tensa a tarefa de cruzar tão silencioso bairro.
Sempre por perto, os ratos parecem acompanhá-lo. Certamente o cheiro fresco da carga despertou suas vorazes presas.